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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

"Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), de Glauber Rocha



O VALE DAS DORES & AS FLORES IMAGINÁRIAS
- Tentativa de análise de um dos clássicos maiores do cinema brasileiro - 


Na vastidão do sertão, terra desoladora e árida onde carcaças de cavalos mortos apodrecem em meio aos cactos, desenrolam-se algumas das obras-de-arte mais significativas da história da cultura brasileira: “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa; “Os Sertões”, de Euclides da Cunha”; "Vidas Secas", de Graciliano Ramos; e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, decerto uma das maiores obras-primas cinematográficas da estória do nosso cinema. 

O filme de Glauber, me parece, é muito mais um “estudo sociológico” do que um manifesto político ou um tratado teológico, apesar de poder ser visto como tudo isso por diferentes espectadores. É uma brilhante descrição das lógicas desesperadas da religiosidade e do misticismo popular. O vaqueiro Manoel, que já no começo do filme tem explicitada sua condição de espoliado, ao ser despedido e açoitado pelo patrão, reage com agressividade visceral à arrogância patronal, gerando o primeiro ciclo de violência que vemos na tela, e que acaba gerando, por efeito dominó, a morte de sua mãe. Primeiro inocente que tomba. 

A mãe não morre “da morte de Deus”, como diz a letra da canção entoada pela ressonante voz de Sérgio Ricardo: “foi de tiro que jagunço deu”, “foi de briga no sertão”. A brutalidade da guerra é sempre escandalosa, mas seria um pouquinho menos se no processo os inocentes não tombassem – mas tombam sempre, sejam com balas perdidas, bombardeios indiscriminados ou pelo sadismo dos inimigos. Lembrem-se do desfecho crudelíssimo, de estilhaçar o coração, da trilogia “O Poderoso Chefão” --- o modo como o ciclo de violência, que vem desde Vito Corleone, e muito antes dele, continua derrubando o sangue puro de quem não tem nada a ver com a história. São as próprias escadarias da História – símbolo cinematográfico supremo: a Escadaria de Odessa no “Encouraçado Potemkin” de Einsenstein – que não cessam de ter seus degraus encharcados de sangue animal, de sangue humano. 

O filme de Glauber possui sua versão pessoal do “pregador-da-miséria”, o beato Sebastião, aquele que as autoridades temem que se torne um novo Antonio Conselheiro. Ele profere apocalípticas profecias, garantindo que as bolas do inferno são iminentes, que virão para calcinar as injustiças da terra, ao mesmo tempo que promete aos seus crédulos fiéis uma bem-aventurança utópica. Promete “uma terra onde tudo é verde; os cavalo comendo as flor; os menino bebendo o leite que flui nos rio”. Na “ilha” paradisíaca que imagina, tem água e comida em abundância; “do lado de lá tem ouro no mar; tem a fartura do céu e todo dia, quando o Sol nasce, aparecem Jesus Cristo e a Virgem Maria...”. 

Usa o Sermão da Montanha, que diz que é mais difícil um rico entrar no paraíso do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha, para fisgar fiéis: “quem é pobre, vai ser rico no céu; quem é rico, vai ser pobre nas profunda do inferno!” A luta de classes se escancara; o “santo” é um líder de massas que nada tem a perder senão sua fome. Não se vê muito “pacifismo” nas atitudes deste Sebastião, homem negro e tão miserável quanto seus seguidores: ele entra nas cidades mandando que atirem para o alto, como se a força das orações não pudesse prescindir da persuasão das armas. Quer demonstrar o seu poder, e o faz de modo alucinado, megalomaníaco, acompanhado por uma romaria de deserdados, de vira-latas, que cantam em coro um lamento por vidas vivas que estão morrendo – de sede e fome, de insolação e medo. 

O vaqueiro Manoel, após a perda súbita do emprego e da mãe, partirá numa jornada mística pelas veredas deste grande sertão, experimentando os meios que estão acessíveis --- todos eles dilacerantemente espinhentos --- para a salvação do corpo e da alma. Em Monte Santo, filia-se aos seguidores de Sebastião, beija-lhe os pés sujos como se fosse o próprio Salvador, numa submissão absoluta a uma autoridade que ele não questiona seriamente, por mais que sua esposa, Rosa, tente-lhe inculcar um pouco de ceticismo e lucidez. A razão não funciona tão bem debaixo dum Sol de 40 graus, dentro dum corpo onde ronca de fome o estômago subnutrido e humilhado de alguém que está à espera de um milagre. E todo mundo sabe que estar à espera de um milagre é o equivalente a estar muito ferrado na vida, amarrado à impotência, sem forças próprias e só na esperança de auxílios transcendentes. 

As consequências da credulidade de Manoel ao pseudo-santo são terríveis. Este homem já tão dorido, que tantos fardos já carregou para os senhores das terras, convence-se da necessidade do martírio e de que estará comprando com ele um tíquete de entrada no paraíso. Na longa cena em que ele sobe o Monte Santo, com uma imensa pedra na cabeça, arrastando os joelhos num solo cheio de pedregulhos, acompanhado por um inclemente Sebastião, é uma das cenas mais eloquentes da história do cinema sobre a absurda loucura capaz de se apossar dos homens que abraçam uma ideologia religiosa que lhes diz que precisam sofrer e padecer para a recompensa divina merecer. 

É uma atitude de um masoquismo tão lunático, um comportamento auto-destrutivo e auto-flagelador de uma absurdidade tamanha, que não se sabe se é compaixão pela dor de Manoel ou revolta contra sua burrice a sensação que nos domina. Há por aqui certos ecos de “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, outro clássico da cinemografia brazuca que também narra os paroxismos neuróticos a que podem chegar homens-do-povo quando inebriados pelo ópio religioso. 

Como se fosse pouco, quando atingem o topo, Sebastião o maltrata e faz uma exigência tão cruel quanto a de Deus quando pediu que Abrãao sacrificasse seu filho Isaac ---- o “santo” (que o espectador já vai notando que é um doido varrido...) pede a Manoel que lhe traga sua esposa Rosa e um bebê para um ritual de sacrifício. O espectador, se for sensato, torce, é óbvio, para que o vaqueiro acorde de seu transe e fique indignado contra um pedido tão estapafúrdio e obsceno. José Saramago, em seu Caim, escreve: “...o senhor ordenou a Abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que Abraão tivesse mandado o senhor à merda...” (Caim, pg. 79, ed. Companhia das Letras). 

No filme de Glauber, Manoel é uma espécie de novo Abraão, ofertando um bebêzinho que se debate ao punhal de um louco metido-a-santo. Do mesmo modo que Saramago diz “não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque Abraão obedeceu a uma ordem estúpida” (idem, pg. 81), o espectador do filme de Glauber é levado a perceber o absurdo de um sacrifício que, ao derramar o sangue de um inocente, não gera nada além da estúpida proliferação da violência e da superstição sanguinária.




O sertão de Glauber mais se assemelha a um hospício a céu aberto, onde os enfermos passeiam no pátio, em meio aos cactos, delirando seus deuses em meio a insolações, carcaças e fomes. Como se não houvesse coquetel mais enlouquecedor do que esta mistura de seca, miséria, falsos profetas e promessas falsas de soluções milagrosas. 

O povão que arrasta-se atrás do santo, esperando um presente dos céus, só recebe bala – como na clássica cena em que Antonio das Mortes, o mercenário matador de cangaceiros, irrompe na tela, pau-mandado do clero e do Estado, para dizimar os beatos, num banho-de-sangue que remete tanto ao morticínio de Canudos quanto à cena da escadaria do “O Encouraçado Potemkin” de Eisenstein. 

Depois de passar a primeira metade do filme seguindo os passos de Sebastião, Manoel depara-se com Corisco, uma outra face da vasta geografia humana do Sertão. Depois do messianismo, o cangaço. O enlutado Corisco, que acabou de perder Lampião, recentemente assassinado junto à Maria Bonita, é desses que pega no rifle e no punhal para tentar consertar as mazelas do sertão – crendo, é claro, que tem um santo do seu lado. Manoel, porém, vai notar que o derramamento de sangue que Corisco prega não vai de encontro com suas próprias perspectivas: “Não dá pra fazer justiça no derramamento de sangue!” 

Dos mais profundos lodaçais da miséria e da infelicidade ergue-se, como uma flor nascendo no deserto mais árido, uma utopia religiosa-política muito bem simbolizada pelo mote “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão...”. 

Uma perspectiva bem marxista sobre a religião, que reconhece nas condições materiais as fontes destas idéias ilusórias e alucinatórias que formam o corpo da ideologia religiosa, parece dar o tom no clássico de Glauber: é a miséria, o analfabetismo, o desemprego, a má distribuição de renda e de terra, que faz com que as pessoas se agarrem de modo tão cego a doutrinas-de-salvação. Quando a vida na Terra é tão terrível e árida, só resta fabricar a esperança de uma felicidade que começará Do-Lado-De-Lá... 

O cangaço, de certo modo, representa já uma ruptura com o resignacionismo daqueles que, ao invés de agirem em prol de mudança, caem de joelhos e rezam para deuses que não existem e santos há muito mortos. É na base da porrada, diz em suma a ideologia do cangaço, que os exploradores e opressores serão arrancados de suas posições de poder e usurpação. O problema é que o poder possui a grana que compra os mercenários – o Dragão da Maldade é financiado pela bufunfa, e o que pode o santo guerreiro contra este colosso dotado de fuzis, escopetas e balas à rodo? Antonio das Mortes triunfa sobre uma pilha de cadáveres e Glauber, realista, se recusa a dar ao público a papinha reconfortante de um happy end. 

Numa cena cáustica e brilhante, que remete às mais sarcásticas “tiradas” de Luis Buñuel – em “A Via Láctea” ou “Tristana”, por exemplo... - Glauber mostra o conluio da Igreja com o Estado para pagar o genocídio dos beatos. Oferecem a Antonio das Mortes uma fortuna, que o transformaria em um dos homens mais ricos do Brasil, em um abastado fazendeiro com as mãos sujas do sangue dos miseráveis, e ele não resiste à atenção: é assim, em nosso país, que agem os ricos. É assim que nascem os ricos. A miséria é explorada porque dá lucro e é eliminada em hecatombes genocidas quando se torna ameaçadora. 

* * * * *

No sertão de Glauber, a fé viceja em meio à seca como uma negação da realidade: o que os religiosos imaginam é justamente aquilo que não possuem. Nietzsche explicava o ímpeto religioso que deu origem ao Cristianismo, “religião de escravos”, remetendo ao ressentimento que sentiam as classes pisoteadas e oprimidas que, não conseguindo uma vida decente e digna na Terra, fabricavam fantasias vingativas onde os Senhores queimavam nas danações infindáveis do Inferno. Teólogos de muito renome e Papas ungidos de auréolas garantiram por séculos a seus fiéis que “dentre as delícias que serão gozadas pelos eleitos no Paraíso estará a possibilidade de testemunhar o sofrimento dos condenados ao Inferno” (ver “A Genealogia da Moral”). Mas uma vingança imaginária não cria um mundo melhor, eis o ponto. Imaginar uma vitória no além-túmulo significa resignar-se à derrota neste mundo. É neste sentido que Marx referia-se, numa formulação ainda atualíssima, à religião como “ópio do povo”. 

Diz Lúkacs: “o ateísmo marxista é parte de uma práxis social que oferecerá um dia a todos os homens uma vida na qual as exigências religiosas estarão completamente superadas. Elas já não existem para aqueles que combatem conscientemente em prol deste futuro. E, dado que o mundo real é tomado como o campo de luta pela auto-libertação do homem, este mundo sem Deus não é mais um mundo de prosaísmo desesperado: ao contrário, nele nasce o pathos deste sentido terrestre consumado, no qual todos os valores espirituais e morais até hoje existentes sob formas religiosas ou semi-religiosas emergem com seu pleno relevo.” (pg. 79) 

A abolição da religião passa necessariamente pela abolição das condições materiais que geram a “necessidade” da religião, ou melhor, o “campo psíquico” fecundo onde desabrocham as sementes do fanatismo – a miséria e o espoliamento, a submissão absoluta ao poder transcendente do patrão ou do sistema econômico, a sensação de dependência e de fraqueza, são algumas das fontes que tornam a adoção de uma ideologia religiosa quase uma “necessidade” para estas massas que, por não terem nada neste mundo, só podem projetar seus bens num outro mundo - num fantástico além-túmulo de conto-de-fadas. 

Mas permitir que os pobres se inebriem com a falsa crença de que terão no Céu a riqueza, a justiça e a caridade que lhe foi negada na Terra é o cúmulo do conformismo e da crueldade; libertá-los das cadeias da religião, para que sintam e saibam com lucidez que só existe este mundo, e que é neste mundo que é preciso construir uma conjuntura mais justa e mais humana, é indispensável. A crença religiosa é um fator anti-progressista, como aponta tão claramente Jean-Marie Guyau. A melhora das condições-de-vida da humanidade depende da libertação desta cegueira da esperança, deste ressentimento vingativo que, ao invés de agir, imagina a derrota do inimigo. Neste sentido, as palavras de Marx prosseguem perfeitas:

   
“A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão de uma angústia real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma situação não espiritual. É o ópio do povo. A abolição da religião como a felicidade ilusória do povo é necessária para sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões sobre sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, portanto, em embrião, a crítica do vale das dores, cuja auréola é a religião. A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desaponta o homem com o fito de fazê-lo pensar, agir, criar sua realidade como um homem desapontado que recobrou a razão, a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã, e deste modo a sua energia prática, é o fato de começar pela decisiva superação positiva da religião. A crítica da religião culmina na doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem. Culmina, por conseguinte, no imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem aparece como um ser degradado, escravizado, abandonado, desprezível." 
KARL MARX. Crítica à Filosofia do Direito de Hegel - Introdução, p. 145-146, 148, 151; como citado por LÚKACS em O Jovem Marx e Outros Escritos de Filosofia, p. 173-174, ed. UFRJ.


Assista na íntegra >>>

Ismail Xavier e Joel Pizzini falam sobre o cinema político de Glauber >>>

sábado, 7 de abril de 2012

"Proibido Proibir" (de Jorge Durán, Brasil, 2007)



Gosto daquela que mandou o Chico. Quando compôs Gota D’Água, peça escrita em parceria com Paulo Pontes, Chiquinho Buarque apostava numa ideia atrevida: transpor para um típico subúrbio carioca a trama de Medéia, clássica tragédia grega de Eurípides. Esta trama, já transposta para o cinema por Lars Von Trier (1988) e Pier Paolo Pasolini (1969), retrata o destino inglório de Medéia ao ser abandonada por seu marido Jasão e que vinga-se matando os dois filhos do casal. Aos que duvidavam dessa transposição da obra para a realidade carioca, Chico costumava responder:

- “E por que não? Acontecem por dia, no Rio, umas cinco tragédias gregas.”

Proibido Proibir (de Jorge Durán), que eu considero um dos grandes filmes brasileiros dos últimos anos, traz à luz uma destas tragédias cariocas tão cotidianas, tão triviais e às vezes tão ausentes dos grandes jornais de tão recorrentes que se tornaram. É verdade que fomos soterrados, nos últimos anos, por histórias deste Rio que não é o do cartão-postal, do Cristo Redentor, do bondinho do Pão de Açúcar: a faceta trash do Rio é ferida exposta nos dois Tropa de Elite, em Cidade de Deus e Cidade dos Homens, Ônibus 174, Notícias de uma Guerra Particular, Complexo Universo Paralelo, Favela Rising... Mas Proibido Proibir prova que ainda há o que dizer - e muito! - sobre as vidas que convivem e se entrechocam nesta grande metrópole latino-americana que se prepara para receber Copa e Olimpíada.


A parte comédia-romântica do filme é adorável por si só - e não só dá-de-10 em qualquer daqueles filmecos roliudianos água-com-açúcar e inofensivos com a Meg Ryan ou a Sandra Bullock, como também contêm um ménage à trois tão bem amarrado, com diálogos tão espertos e situações tão bem construídas, que rivaliza bonito com qualquer pérola do cinema francês, mesmo do Truffaut ou do Eric Rohmer.


Não é aí neste ménage entre Paulo, León e Letícia que se esconde o elemento trágico do filme de Durán. Proibido Proibir não emula Otelo e não contêm perversidades de Iago ou pescocinhos torcidos de Desdêmona. Pelo contrário: é uma celebração da amizade. Paulo (Caio Blat) e León (Alexandre Rodrigues, que encarnou o Buscapé no clássico de Fernando Meirelles) não deixam de ser "irmãos do peito" só porque um é Flamengo e o outro Botafogo, só porque um é médico e o outro sociólogo, só porque um é branquelo e o outro é negão. O problema é: poderá esta amizade sobreviver ao amor pela mesma mulher?

O diretor e roteirista Dúran, chileno radicado no Brasil, comanda o leme deste navio com o pulso firme de um marinheiro experiente nestas águas turbulentas da violência urbana e da juventude pega no centro do turbilhão. Durán é o roteirista de obras clássicas do cinema latino-americano como Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), Pixote, a lei do mais fraco (1981), ambos de Hector Babenco, e Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles. Com um currículo desses, não surpreende que tenha realizado um filme tão bom em Proibido Proibir - cujo título, aliás, evoca tanto o Tropicalismo e a clássica canção de Caetano quanto o Maio de 68 francês e os slogans pixados nos muros de Paris e que conclamavam a juventude a ser realista e exigir o impossível (dentre muitos outros motes).

 

Apesar de não conter cenas de passeatas ou grandes manifestações de rua, Proibido Proibir está carregado de política. Os três amigos discutem de forma desabrida e sem meias-palavras sobre as problemáticas mais urgentes de seu dia-a-dia - e divergem sobre o quanto as soluções seriam ou não necessariamente políticas. Apesar de seu título, Proibido Proibir versa pouco sobre autoritarismo e ditadura, ao menos numa olhadela de superfície; o filme é muito mais uma reflexão sobre liberdade e libertação, especialmente por dedicar-se inteiramente a acompanhar, cheio de empatia, estes três jovens tão energicamente libertários. León, Paulo e Letícia, por isso, me parecem ser uma espécie de equivalente, no cinema brasileiro, de outros dois trios que marcaram o cinema mundial nos últimos anos: aquele de Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, e aquele que viaja de ácido na Kombi psicodélica em Aconteceu em Woodstock, de Ang Lee. 

O que realmente arrasta para os pântanos do trágico um enredo que parecia tão propício a um tratamento Sessão da Tarde ou Malhação é o retrato explícito da realidade social dos subúrbios cariocas. Os ingredientes que conduzem à catástrofe são conhecidos: descaso do poder público com educação, moradia e saúde; brutalidade policial mesclada com abuso de poder e racismo; ciclos de ódio e de vendeta que engolfam todos numa espécie de guerra civil não declarada. Os três amigos, quando tentam salvar o menino Cacau de ser assassinado pelos PMs, enredam-se em situações onde a bala perdida é comuníssima e onde quase ninguém aprendeu o evangelho cantado pelo Rappa: "também morre quem atira".

Sem dúvida que os detratores podem sustentar que Jorge Durán demoniza a figura da polícia militar, que é a verdadeira vilã da história e aparece na tela, mais uma vez, no papel de carrasca. O mínimo que se pode dizer é que este espírito anti-PM no Brasil de Lula e Dilma está bem no ar dos tempos, em sintonia com o zeitgeist, em especial pois ainda temos frescas na memória ocorrências como o massacre do Carandiru e da Candelária, o caso Ônibus 174 e as "intervenções" dos caveirões da Tropa de Elite nos morros do Rio. A desocupação brutal de Pinheirinho, em São José dos Campos, e o modo selvagem com que a PM paulista lidou com o movimento estudantil da USP durante toda a era do reitor Rodas, são outros sinais de uma instituição que têm cometido os abusos mais grotescos e despertado intensas ondas de indignação legítima. Sei que na cabeça de muito brasileiro ainda ressoa o que disse o Capitão Nascimento no encerramento de Tropa de Elite II, em seu pronunciamento no Senado: "a PM do Rio de Janeiro... tem que acabar!" Mas só a do Rio de Janeiro?

É um filme corajoso no modo como confronta os dogmas e os preconceitos. Estes jovens do filme estão longe de seguirem a cartilha Belchior-iana do "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". São uma juventude que se independeu não só da tutela paterno-materna, como também amadureceu na escola da vida de um modo impossível àqueles que quedaram, quietinhos e submissos, obedientes à família, à Deus e à pátria. São jovens que forjam relacionamentos com uma ousadia que não possuem os mais conservadores, os mais apegados a regras ancestrais e costumes sacralizados.

Outra das qualidades do filme é o tratamento dado à cannabis  no enredo. O cinema brasileiro andou produzindo alguns excelentes documentários sobre o assunto nos últimos anos - com destaque para Cortina de Fumaça e Quebrando o Tabu - mas em poucas obras ficcionais um enredo foi tão bem-bolado a fim de colocar em xeque alguns preconceitos e abrir alguns horizontes mais amplos.

Pela primeira vez no cinema nacional, que eu me lembre, a questão da cannabis medicinal é posta em questão: o personagem de Caio Blat, estudante de medicina, retratado como um profissional muito competente no atendimento aos doentes e pródigo em empatia e auxílio emocional, oferece clandestinamente à sua paciente alguns béques que a senhora aceita com os olhos brilhando de júbilo. Ele sabe que, caso a direção do hospital ficasse sabendo, ele estaria enrascado e correria o risco de ser expulso. Mas sabe também, por experiência própria, a magnitude e a variedade dos efeitos terapêuticos da cannabis, conhecidos e empregados pela humanidade, nas mais variadas culturas, há milênios e milênios. 

Que o Brasil ainda esteja empacado numa política de drogas que proíbe radicalmente o uso e o cultivo da cannabis, inclusive para fins medicinais, é mais uma prova do nosso atraso e de nossos conservadorismos irracionais. Muitos pacientes que hoje penam com o câncer, a AIDS ou a depressão, por exemplo, poderiam ter uma qualidade de vida imensamente superior caso adotássemos um sistema semelhante àquele da Califórnia, onde a legalização da cannabis medicinal foi efetivada com pleno sucesso, com imensos efeitos positivos não só para os doentes, como para a própria economia local. 

Proibido Proibir nos convida a concluir, para usar uma frase de Terence McKenna, que a maconha é uma substância capaz de causar intensas reações psicóticas... naqueles que não fumam maconha. Aqueles que nunca tiveram uma experiência com a erva têm a tendência, em sua cabacice ignorante, a demonizá-la e a inventar cruzadas de perseguição a seus usuários e beneficiários. Ninguém me tira da cabeça que os mais empedernidos e autoritários dos proibicionistas, os mais entusiásticos defensores de soluções policialescas e encarceramentos em massa, são os caretas dogmáticos - aqueles que se recusam a experimentar a erva para tirar suas próprias conclusões sobre seus riscos e benefícios e aderem cegamente a seus preconceitos. 

O personagem de Caio Blat, que aparece fumando um baseado em uma dúzia de cenas, é criticado e rechaçado várias vezes por aqueles a seu redor, inclusive seus amigos, por sua adesão demasiado entusiástica à erva. León, por exemplo, lhe presenteia com um exemplar de A História da Loucura, de Foucault, sugerindo que ele se informe sobre os potenciais riscos de enlouquecimento que há no uso demasiado contínuo da ganja. Ora, mas quem é o maior enlouquecido senão essas políticas públicas, enraizadas em preconceitos, baseadas em preceitos militarescos e autoritários, que tratam usuários como criminoso? O que é que enlouquece se não esse sistema que taca o rótulo de traficante sobre aqueles que julga-se com licença para matar?


"só mesmo os utópicos fundamentalistas religiosos podem acreditar em livrar o mundo das drogas. (...) Graças à proibição ultrarradical, atualmente as drogas matam mais, machucam mais e causam mais dano social que em qualquer época da história. Hoje nossa sociedade atribuiu aos drogofóbicos o trabalho de proteger a sociedade das drogas. (...) Precisamos tirar os histéricos do poder, se queremos alguma racionalidade no mundo." (em O Fim da Guerra - leia mais!)

O personagem de Caio Blat (e que interpretação magnífica!) me parece representar uma figura meio outsider, contra-cultural, que abriu demais as portas da consciência para poder engolir ovelhisticamente as mentiras e as ideologias que nos são enfiadas goela abaixo. "Fascinado pelo mistério da morte", num espírito similar ao de Drauzio Varela em Por um Fio, é um personagem rodeado pelo sofrimento e pelo falecimento que o rodeiam em todos os cantos do hospital. Obviamente, como o doutor Dráuzio, Paulo não crê em Deus, provavelmente pela impossibilidade de conciliar o seu testemunho cotidiano do sofrimento dos inocentes com a idéia de uma divindade justa e misericordiosa. Quando Letícia vem com papinho de crente, ele alfineta a moça: "Você acredita até na novela".

Proibido Proibir é ousado no retrato de um maconheiro que, rompendo com todos os ópios-do-povo, da religião à novela, abre os olhos para a realidade mais nua-e-crua e estende seus braços em atitude de caridade. Pois a mais grotesca das pretensões dos cristãos é pensar que eles são os "donos" da caridade e têm o "monopólio do coração", para usar um termo de André Comte-Sponville. A caridade, me parece, independe completamente da fé e não é propriedade privada do Papa ou da Bíblia. Qualquer ateu, agnóstico ou cético é capaz de, movido pela compaixão, comovido pela empatia, despertado para a fraternidade, agir em benefício do outro. E isso sem o egoísmo inconfesso que é ter a esperança de uma recompensa celeste ou o temor de uma punição futura.

Em Proibido Proibir, acompanhamos emocionados a montanha-russa que conduz uma parcela da juventude brasileira que, desperta, consciente e aguerrida, lança-se nas urgências da política. Mas ninguém vai só, até porque o gigantismo e a monstruosidade do sistema é demais para que qualquer indivíduo solitário sinta-se em condições de erguer sem ajuda o outro-mundo-possível. É a própria amizade que marcha para o epicentro do terremoto, para o centro pulsante da guerra, na certeza de que a União, além de açúcar, faz a força. 

O Maio de 68 na França em foto de Gökşin Sipahioğlu. Mais imagens aqui.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Poesia (Coréia do Sul, 2010, de Lee Chang Dong)



"A arte existe para que a verdade não nos destrua", sugere Nietzsche. A protagonista de Poesia é flagrada pelas câmeras do cineasta sul-coreano Lee Chang Dong em um momento de sua vida em que se vê enredada em situações de imenso potencial destrutivo: diagnosticada com Alzheimer, começa a padecer de lapsos de memória e desagregação de suas capacidades lingüísticas, tendo que lidar com a ascensão da demência senil num estado desolador de solidão, já que a comunicação com filha e neto beira o zero absoluto da incomunicabilidade total. Sua decisão de procurar socorro na arte é quase uma conclusão intuitiva, inconscientemente nietzschiana, de que a vida deixaria de ser suportável se nela não pudéssemos inventar um pouco de beleza.

Para piorar o quadro, esta avó descobre um horror verídico suplementar: Wook, seu neto pré-adolescente, que está sob sua tutela, é acusado de fazer parte de uma gangue de jovens que estuprou uma colega de escola. Logo nos primeiros planos, Poesia nos põe diante da vítima do estupro que, como uma Ofélia oriental, bóia nas águas de seu suicídio, carregando para o silêncio do túmulo suas feridas incomunicáveis. O neto, em estado de negação, incapaz de assumir responsabilidade moral pelo ato, desconversa, muda de assunto, fixa-se na televisão, recusando-se encarar as consequências do que fez com a "turma". 

Lançada neste labirinto, a senhora, que se aproxima de seus últimos dias, decide-se a seguir um curso de poesia. Nunca escreveu um poema em toda a sua vida, e agora, frequentando aulas e saraus, realiza uma espécie de "banho de imersão" nos mistérios do universo poético, num esforço de enxergar e criar beleza em meio a uma realidade que se manifesta com horrenda brutalidade. 

Por que é tão difícil dar à luz um poema autêntico? Deve-se "implorar", feito um devoto diante de seu santo, pela "inspiração"? Ou o trabalho do gênio criativo consiste bem mais no trabalho árduo e na busca incessante, isto é, nas palavras de Einstein, em 10% de inspiração e 90% de transpiração

O poeta é aquele que consegue voltar a enxergar o mundo como faz uma criança maravilhada, ainda não contaminada por hábitos embotantes e ortodoxias rígidas? Ou a verdadeira poesia exige a maturidade de um olhar que enxerga horizontes mais amplos do que o cabresto permite ao comum dos mortais? 

Em meio a questões tais lança-se a avózinha Mija neste filme em que Poesia e Vida caminham pelas estradas do tempo com dedos entrelaçados feito dois jovens amantes ou dois gêmeos siameses.


É notável o quanto o cinema oriental consegue a proeza de lidar com temas tão difíceis (doença, estupro, suicídio...) conservando uma certa sutileza e reservando ao espectador o direito de contemplar aquilo sem se sentir invadido ou agredido pela agressão das imagens. 

O cinema europeu dos últimos anos, em especial nas mãos dos enfants terribles como Gaspar Noé, Michael Haneke, Thomas Vinterberg e Lars Von Trier, esforça-se pelo escancaramento da violência: Noé nos impõe 10 minutos ininterruptos de estupro em Irreversível; Haneke retrata com minúcias as torturas infligidas à uma família burguesa em Violência Gratuita; e membros amputados, inclusive genitálias, povoam algumas das obras dinamarquesas como Anticristo (Von Trier) e Submarino (Vinterberg). O impacto da obra-de-arte é compreendido como indissociável de um certo choque. É preciso traumatizar o espectador para que este compreenda os traumas dos personagens. E assim saímos do cinema contundidos, com as pupilas sentindo-se como um pugilista que apanhou no ringue e quedará por uns dias com o olho roxo.

No cinema oriental, apesar de certas figuras proeminentes que também investem na explícita e escancarada violência gráfica (caso dum Chanwook Park ou dum Takeshi Kitano), a "corrente" principal, me parece, dirige-se para prados estéticos mais tranquilos, contemplativos, serenos. Certos filmes de Kim-Ki Duk funcionam como Templos de Meditação ou mosteiros budistas: Primavera, Outono, Verão, Inverno... e Primavera, por exemplo, é um filme para se assistir sentado na posição de lótus, praticando yôga e em busca do Nirvana. 

Em contraste com a tagarelice de grande parte do cinema ocidental, o Oriente é também mais silencioso, verbalmente falando, numa aposta mais na intuição do que na racionalidade: Wong Kar-Wai, por exemplo, comunica muitíssimo sem precisar de palavras, só com imagens em câmera lenta e violinos dilacerantes, em Amor à Flor da Pele ou 2046.


Lee Chang-Dong, em seu Poesia, insere-se nesta escola de um cinema mais meditativo, que procede sem pressa e não quer chocar gratuitamente, ainda que o tema seja quase incontornavelmente doloroso. Realizar um filme de tamanha beleza e sensibilidade com um enredo repleto de escândalos e tragédias é uma das proezas maiores de Poesia: nela, as realidades brutais não são escamoteadas ou varridas para baixo do tapete como nos filmecos kitsch de Hollywood; mas o ímpeto humano de auto-expressão e de criação, fazendo frente às crueldades do real, é descrito como uma força vital que não deve ser negligenciada.

A Poesia, afinal de contas, não é uma "excrescência ornamental" das sociedades, como nos lembra Leminski. Não há nada de supérfluo ou desdenhável no ato humano de criar uma beleza que possibilite sobreviver a uma verdade que fere: em muitos casos, compreendida a partir da experiência interior do poeta, sua criação é absolutamente vital. Às vezes escrever um poema é um antídoto contra o suicídio; às vezes, é aquilo que se ergue contra a angústia para minorá-la, quem sabe até vencê-la. Às vezes, um poema retêm dentro de si aquilo que, caso o sujeito não tivesse podido expressar, acabaria por destruí-lo.

Em 2h20min de filme, Lee Chang-Dong descreveu o "processo de composição" de um poema que o espectador só conhece no final da película, depois de ter "imergido" na realidade existencial de onde emergiram os versos. Um senso de mistério resta vivo quando o filme se acaba e o espectador ainda está embalado pelas águas que correm em murmúrio silencioso, sem nada dizerem nem dos vivos nem dos mortos. 

O que a protagonista de Poesia parece ter aprendido nesta jornada em que a acompanhamos é a importância vital da expressão: quem não comunica se estrumbica, é vero; mas este "estrumbicar-se" dos que não conseguem extravasar às vezes adquire contornos trágicos. Se a mocinha que foi estuprada tivesse conseguido que suas feridas e traumas psíquicos jorrassem sobre uma página em branco, se a poesia lhe tivesse servido como terapia catártica, teria necessitado tacar-se da ponte? Fica a questão. 

Mas a questão só fica pois uma avózinha, poetisa de primeira viagem nos oceanos da criação, soube transportar-se imaginariamente para o coração de outro, identificar-se com a experiência alheia, ver o mundo com os olhos de uma defunta para sempre silente. O eu-lírico da poesia que coroa o filme é a própria Ofélia do Oriente, que saltou às águas em silêncio, sem expressar suas dores. Destruída pela agressão sofrida, a jovem torna-se protagonista de um poema extremadamente abissal: à caminho do salto fatal, sofre pelas promessas não cumpridas e pelo amor que não veio, antes de shakespeareanamente lançar-se às águas. Uma vida foi destruída pela brutalidade de uma gangue de jovens tarados inconsequentes e de seus pais, que só pensam em abafar o escândalo enchendo a família da vítima com a grana de uma vultosa indenização. Há algo de absolutamente irreparável nisto, algo que equivale à tragicidade que Noé tentou imprimir a seu Irreversível. 

É com uma má sensação de injustiça não redimida que assistimos à "vaquinha" que se faz para indenizar financeiramente à família da mocinha estuprada-suicida. Pois quantia nenhuma de dinheiro é capaz de oferecer a devida reparação à falecida e seus parentes. É o que a poetisa sexagenária compreende muito bem: não se trata de pagar para fazer calar, mas de expressar para fazer lembrar. O esquecimento, que a corrói por dentro através da Alzheimer, é também aquilo que ameaça lançar-se sobre o escândalo do crime para apagá-lo e abafá-lo. E um poeta é sempre inimigo do esquecimento. Para não ser inteiramente destruído pelo devorador Cronos, que Baudelaire descreve como um "inimigo" que "de que cada gota de sangue que derramamos se alimenta e se fortifica", erguemos, frágeis humanos, nossos versos e cantos tão desvairadamente desejosos de uma eternidade impossível!

Ô douleur, ô douleur! Le Temps ronge la vie
Et l'obscur Emnemi qui nous ronge le coeur
Du sang que nous perdons croît et se fortifie.

(Oh dor, oh dor! O tempo rói a vida
E o Inimigo obscuro que nos rói o coração
Do sangue que perdemos cresce e se fortifica.)

BAUDELAIRE. As Flores Do Mal.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Teodorico, o Imperador do Sertão (Eduardo Coutinho, 1978)

"Teodorico, o Imperador do Sertão (1978) é o 2º documentário de Eduardo Coutinho. Assim como o primeiro (Seis Dias em Ouricuri, 1976), foi realizado para o Globo Repórter. Coutinho conhecia Teodorico Bezerra de matérias que havia lido em jornais do Nordeste. Tratava-se de um velho representante da aristocracia rural do Rio Grande do Norte. Possuía fazendas de gado e de cana e, como grande parte dos donos de terra do seu pedaço do Brasil, era o líder político da região. Praticava o poder à moda antiga. Não distinguia entre os interesses particulares e os públicos, mesclando-os todos numa complexa poção à base de paternalismo, orgulho, vaidade, franqueza, autoritarismo e ingenuidade.
Coutinho sabia que Teodorico era um personagem extraordinário. O Major - era assim que gostava de ser tratado - possuía um atributo precioso: não só tinha prazer em falar, mas falava sem dar voltas, convicto de que o ordenamento de seu mundo era praticamente divino. Isso era perfeito para o tipo de narrativa documental fundada na palavra oral que Coutinho começava a explorar. Mas, se sabia que o Major era bom conversador, Coutinho não fazia idéia de como reagiria a um convite para aparecer na televisão. Imaginava que a questão era convencer Teodorico a discorrer para todo o Brasil, no horário nobre da já poderosa Rede Globo de Televisão, sobre sua peculiar concepção de mundo. Henfil, que conhecia o personagem, intercedeu. Fez o contato, marcou um encontro e sugeriu a Coutinho, paulista de nascimento, que afetasse um sotaque nordestino durante a conversa. Nada disso foi necessário. O Major ficou encantado com a possibilidade de ser filmado. Hospedou a equipe em sua fazenda e se pôs a falar durante seis dias - quatro deles ali, dois outros em Natal. O resultado é um dos melhores documentários já realizados no Brasil.
Onde mais se pode ouvir um coronel nordestino dizer o seguinte a seus empregados, num pacato dia de domingo (a voz sai dos alto-falantes espalhados pela fazenda): 'Semana que vem começa o alistamento eleitoral. Eu mesmo quero tirar a fotografia de vocês. Todos aqui devem ser eleitores. É como sempre digo: a única coisa que eu posso precisar de vocês é o voto. Outra coisa vocês não têm pra me dar'. Ele continua: 'Vocês não têm um automóvel para me emprestar, vocês não têm um cavalo para eu andar. Mas o voto vocês têm. E, se vocês não me dão o voto, por que é que eu vou querer continuar a conversar com vocês?' Não se pense que o Major diz essas [palavras] com aspereza. O tom é didático e paciente, como o de um professor primário que se esforça para ensinar a tabuada do oito a seus alunos. O major Teodorico é o dono das almas locais. [...]
Na mão de qualquer outro documentarista, Teodorico, o Imperador do Sertão seria uma caricatura; vale dizer: não existiria. Poderia ser dispensado com um sorriso irônico. Ouvido por Coutinho, ele não apenas existe, como tem suas razões e é capaz de explicá-las. Concederam-lhe tempo para nos seduzir, e subitamente nos damos conta: um homem como Teodorico, dizendo o que diz, consegue ser fascinante. Essa é uma verdade difícil de admitir, mas, em relação ao poder e aos poderosos, existe lição maior a ser aprendida?" 
 JOÃO MOREIRA SALLES
(Ilha Deserta - Filmes - Ed. Publifolha)